NOITE DE ANJOS
O carro, vagarosamente, percorria a estrada que serpenteava a serra, enquanto os velhos faróis cortavam, com dificuldade, as neblinas que bafejavam os vales. As árvores, vestidas de branco, pareciam fantasmas que, aos olhos do petiz, abriam a porta ao mundo da fantasia.
Ao chegar a casa dos avós maternos, e após o primeiro impacto que lhe tolhera os sentidos, o alçapão da curiosidade abriu-se e, sempre ancorado no olhar do avô José, que não o largava por um segundo, depressa começou a esquadrinhar tudo em redor.
Como o pachorrento cão serra da estrela, apesar das constantes momices, não lhe ligasse, foram as aves de capoeira que perderam o sossego. A perua branca, talvez devido à plumagem imitando a neve, foi encantamento imediato, coisa que não agradou à avó, pois já lhe tinha traçado a sua sina.
– Avô, que árvore é esta? E esta? Por que é que algumas árvores deixam cair as folhas e outras não? – perguntava o petiz, numa azáfama inquiridora.
O avô ia respondendo e, se não sabia, encolhia os ombros. Se ele insistia, engendrava explicações supostamente convincentes. Dizia-lhe que só as mais vaidosas as deixavam cair, no inverno, para que a primavera lhes arranjasse uma fatiota nova, ou que eram, como algumas aves, que mudavam a cor das penas conforme a estação do ano.
Ante o ar atónito do miúdo, e olhando o céu que agourava caída de neve em breve, rematou fantasioso:
– Dizem até que os anjos deixam cair as penas no inverno, por isso é que neva.
– Onde vivem os anjos?
– Vivem no céu. São os ajudantes de Nosso Senhor. – disse pouco convicto.
– Onde fica isso?
– Por cima das nuvens, dizem.
A cada resposta mais se ensarilhava. Felizmente o lusco-fusco e o chamamento da mulher foram preciosos auxiliares.
– Trá-lo para dentro! Ainda apanha uma constipação. Anda para dentro, vá. – ralhou a avó, sempre pronta a protegê- lo e também porque queria poupá-lo à visão da degola dos galináceos.
Renitentemente, entrou para o conforto da lareira onde as cavacas crepitavam e teciam, nas paredes enegrecidas, carimbos de seres imaginários.
A brincadeira com os tições quase que o convenciam a ficar se não começassem a cair uns farrapos de neve.
– Vamos ter um Natal branco – sentenciou o avô José, ajeitando, com a bota, mais uma cavaca.
O miúdo, que tal nunca vira, ficou louco de alegria e, perante este chamariz, foi impossível segurá-lo dentro de casa.
Brincou, longamente, indiferente à algazarra que soava dos lados da capoeira.
Após a euforia inicial, e quando o silêncio já tinha novamente tomado conta do lugar, procurou a mãe.
Quando a encontrou já o “seu” peru estava degolado e quase depenado. Apático, sem dizer palavra, fitou longamente as penas que no chão se confundiam com a neve que caía cada vez mais abundantemente.
Ambas, preocupadas com a súbita apoplexia, procuraram enxotá-lo dali.
Virando-se para a avó, e pensando que esta seria fonte mais fidedigna do que a mãe, perguntou:
– Avó, os anjos mudam de penas quando chega o inverno, não mudam?
Ambas se olharam num sorriso vestido de ternura.
– Não meu querido, os anjos não mudam de penas.
Deu meia volta e saiu correndo, lágrima ao canto do olho, deixando-as intrigadas e preocupadas.
– Avô, avô! – gritou, a plenos pulmões e, mal o viu, disparou numa voz soluçante:
– Mentiste-me! – e, ante a estupefação do avô, rematou. – Deus matou os anjos e já está a depená-los!