Em julho, no concelho vizinho, de Ourém, a equipa do projeto de Arqueologia MEDICE, que está a estudar Alvaiázere, no período da Pré-História, fez algo invulgar. Levaram a cabo uma exploração científica, ficando interruptamente a intervencionar um sítio arqueológico a 100 metros de profundidade. Durante três dias viveram no interior de uma cavidade para recuperar os vestígios arqueológicos de uma comunidade que viveu na região centro durante o final da pré e proto-história. Depois de terem sido divulgados em mais de 25 artigos de jornal, durante o mês de julho e agosto, quisemos saber mais sobre esta aventura arqueológica.
A docente no Instituto Politécnico de Tomar e investigadora do Centro de Geociências – Fundação de Ciências e Tecnologia e colaboradora do nosso jornal na rúbrica “Escavar o Passado em Alvaiázere”, Alexandra Figueiredo foi também uma das coordenadoras desta investigação singular. A ela juntaram-se os investigadores Cláudio Monteiro, do Centro de Investigação de Ciências Históricas, da Universidade Autónoma de Lisboa e o antropólogo Daniel Alves, colaborador do Laboratório de Arqueologia e Conservação do Património Subaquático e gestor da Ambigrama. E foi a esta equipa, que fizemos uma também entrevista singular.
O Alv. – Encontramo-nos em entrevista, mais uma vez, este ano, mas desta vez com um caso singular. Três dias a viver dia e noite numa cavidade a 100 metros de profundidade! Isso deve ter sido uma aventura?
Alexandra Figueiredo – É verdade, foram condições únicas que vivemos. Durante o ano de 2023 registamos a presença de um conjunto de ossadas humanas no Algar da Malhada de Dentro, no concelho de Ourém e começamos a preparar toda a logística para que neste verão pudéssemos empreender uma intervenção arqueológica neste local tão fantástico.
O Alv. – Pelas várias notícias que saíram nos diferentes jornais e rádios, os três dias tiveram uma razão de ser?
Cláudio Monteiro – Verdade. A zona onde se encontram os vestígios está a uma profundidade superior a 80 metros, alguns ossos também são visíveis a quase 100 metros e a distância a que eles se encontram da boca do algar não permitia que o trabalho decorresse normalmente, pois em termos logísticos demorávamos muito tempo a chegar ao local. Se considerarmos que teríamos que levar connosco um conjunto de ferramentas, escavar e extrair os materiais arqueológicos e osteológicos para a superfície a única possibilidade viável que observávamos, foi termos de dormir na cavidade.
O Alv. – E como foi essa experiência?
Alexandra Figueiredo – Não foi fácil, porque a temperatura baixa e a humidade elevada, torna tudo muito desconfortável. No local onde nos encontrávamos estava sempre a pingar gotículas de condensação, umas atrás das outras. A determinada altura já estávamos com a roupa molhada junto ao corpo. Depois o local é lamacento, pelo que onde tocávamos, onde nos sentávamos, era lama por todo o lado. Enquanto estávamos a trabalhar, a concentração de vermos o trabalho feito, a dinâmica da equipa e a movimentação própria da escavação fazia com que nos desfocássemos da temperatura e da humidade, mas quando parávamos o tempo abrandava, o frio instalava-se e os ossos sentiam as agruras do local (sorriu).
Cláudio Monteiro – O ideal era não pensarmos muito no assunto e continuarmos a trabalhar. Dormimos muito pouco. Os colegas que estavam connosco dormiram, mas nós os dois preferimos trabalhar o mais possível.
Daniel Alves – Depois, para além do treino de espeleologia que tivemos, com várias saídas, foi necessário prepararmo-nos fisicamente, eu tive de emagrecer para poder passar em algumas zonas. O acesso para além de poços que tinham de ser subidos e descidos, era também pautado por alguns buracos estreitos que tinham de ser atravessados.
O Alv. – E com a higiene, como fizeram?
Cláudio Monteiro – Existem regras muito especificas na espeleologia, por isso nada podia ficar. Com isto, todos os dejetos foram também transportados para a superfície. A solução foi fazer em garrafinhas com auxílio de saquinhos de gel e cantarinhas que permitissem urinar em pé, mesmo com as senhoras que nos acompanharam.
Alexandra Figueiredo – (Rindo-se) Essas foram experiências memoráveis que teremos de guardar sem expô-las publicamente, mas sim, imaginem lama por todo o lado. Claro que o banho teve de esperar pelo término dos trabalhos. A escolha dos três dias esteve muito ligado com o razoável da higiene. Contudo, nada disto foi difícil, porque a equipa da CEAE-Liga Proteção Natureza que nos acompanhou, uma equipa de 10 espeleólogos profissionais, tornou toda a logística muito tranquila. Inclusive a alimentação, permitindo-nos concentrar na investigação a 100%. Também na segurança, sempre sentimos que estávamos completamente acompanhados, com contacto direto com a superfície.
O Alv. – Pois, com certeza tinham planeados protocolos de segurança e extração para o caso de acontecer algum imprevisto?
Alexandra Figueiredo – Tudo isso estava contemplado na preparação, bem planeado, com vários subsistemas e considerações para diferentes casos, incluindo fomos acompanhados no primeiro dia pela GNR. Á superfície estava sempre uma equipa durante todo o tempo, acampados junto ao local. A junta de freguesia de Alburitel também nos cedeu um espaço e apoio alimentar para albergar colegas que nos auxiliavam e de 30 em 30 minutos tínhamos um rádio que emitia sinais à superfície para dizermos que estava tudo bem e podermos acionar uma equipa de resgate ou auxílio caso precisássemos. Questões de logística que não foram tão falados nos jornais, mas que foram vitais para o sucesso da campanha. Estamos imensamente gratos a toda a equipa do CEAE-LPN que nos acompanharam, para além disso foram fantásticos como exemplos de descontração e motivação.
O Alv. – E o que descobriram?
Cláudio Monteiro – Em 2023 quando lá fomos verificamos logo que estávamos perante uma remobilização de sedimentos de uma outra sala, isto é, de um contexto ex situ, como lhe chamamos. Os sedimentos escoaram para esta sala por uma diáclase, isto é uma fenda, provavelmente por um abatimento da sala original ou empurrado por alguma força, como um descarrego de água.
Alexandra Figueiredo – Talvez seja melhor perceber de que falamos para explicar o sítio arqueológico. Durante a pré-história, após o Paleolítico Médio, o Homem começou a enterrar os seus mortos e a desenvolver rituais no interior de cavidades. Quando algum elemento da comunidade morria eles deslocavamse a zonas específicas como abrigos ou grutas e depositavam os seus familiares associando-lhes alguns elementos votivos, como alimentos, flores e ferramentas que usavam, em algumas situações realizavam rituais com fogo. Por isso, nestes locais, podemos observar ossadas humanas e animais, que eram os alimentos associados, seja por alguma crença ou culto, e materiais característicos que eram em pedra e mais recentemente também a cerâmica. Estes cultos decorrem até à proto-história, que é o período anterior à presença dos romanos. O Algar da Água, na serra de Alvaiázere, é um sítio idêntico a este, onde registamos estas deposições desde o Mesolítico, com mais de 8000 anos.
O Alv. – Então, a deposição original não foi feita a esta profundidade?
Alexandra Figueiredo – Não! Terá sido feita noutro local que estamos a estudar, com certeza numa galeria superior a menor profundidade à superfície, como explicou o meu colega. Atualmente estamos a empreender alguns trabalhos de investigação para detetar possíveis antigas entradas que dariam acesso a estas salas que existiram, mas que ainda não lhes conseguimos aceder.
O Alv. – Em Alvaiázere não temos algares tão profundos?
Alexandra Figueiredo – Com uma dimensão como o Algar da Malhada de Dentro, não, que tem já topografados 2 km de comprimento e mais de 100 de profundidade. De todos os que conhecemos, que até nos foram mostrados pelo GPS, somente o Algar da Água apresenta vestígios arqueológicos. Acredito que o Algar tivesse outras salas, que estarão agora tapadas, isto até é evidente nos vestígios registados, pois ainda que tenhamos elementos ósseos de dois indivíduos pré-históricos, um deles uma criança, os vestígios aparentam seguir para a vertente sudoeste, que está entulhada, e ainda que tenhamos escavado até essa base não encontramos os enterramentos, somente dois pequenos ossos, uma falange e um fragmento de mandibula.
O Alv. – Seria possível tentar abrir e aceder a essas zonas?
Cláudio Monteiro – Claro que sim, será dar continuidade aos trabalhos arqueológicos e juntar alguns instrumentos tecnológicos que auxiliem a deteção de espaços vazios. Claro que para isto acontecer também é necessário interesse municipal, pois será sempre necessário apoio financeiro.
O Alv. – Esse projeto foi já apresentado à Câmara Municipal de Alvaiázere?
Claúdio Monteiro – Sim, já no ano passado o fizemos, mas não nos responderam, entretanto reforçamos o pedido este ano, mas também ainda não obtivemos resposta. Isto porque é fundamental pelo menos a garantia da alimentação e alojamento da equipa deslocada. Como podem ver pelo descrito, a equipa necessita de ser interdisciplinar, envolve diferentes questões, pedidos de autorização onde temos de cumprir que o património é salvaguardado, o que for encontrado estudado, os materiais conservados, o que poder ser datado, enviado para os laboratórios internacionais para isso, e as instituições a que pertencemos não conseguem suportar tudo. Por isso parte terá de ser garantido pelas entidades municipais ou associações locais.
O Alv. –Como resultados encontraram ossos humanos?
Daniel Alves – Sim, eu como antropólogo, ainda que tenha sido escavado há um mês já comecei a trabalhar no laboratório a limpar, inventariar, analisar, desenhar, fotografar e a estudar os restos exumados. Estamos perante ossos de vários indivíduos e de diferentes idades (adultos e crianças), recolhemos alguns dentes que vão ser enviados para ADN, para podermos cruzar depois com as populações de Alvaiázere, onde isso está também a ser desenvolvido. Seria muito importante se conseguíssemos algum financiamento para estes estudos, pois permitiria cruzarmos comunidades e perceber se na pré-história haveria trocas e que tipos de relações de parentesco entre as comunidades que ocupavam Rego da Murta e as antas, bem como a zona da serra de Alvaiázere e a cavidade de Algar da Água.
Alexandra Figueiredo – Para além disso estamos a tentar realizar um projeto que me parece muito interessante que passa por cruzar o ADN antigo, destas populações, com o ADN das famílias atuais que vivem em Alvaiázere e em Ourém.
O Alv. – E o ADN destas pessoas preservam-se?
Claúdio Monteiro – Sim, em primeira mão, porque ainda não foi publicado, já temos ADN de um individuo da Anta de Rego da Murta II (antas também conhecidas por Ramalhal), faltam agora interessados em ceder o ADN de famílias atuais e verbas para cruzarmos esses dados. Provavelmente desta forma, os alvaiazerenses vissem estes achados e estes monumentos com maior interesse, pois trata-se dos seus antepassados e se não preservarmos a nossa história, como entenderemos a nossa identidade?
O Alv. – No âmbito desta entrevista existe alguma informação que queiram ainda revelar?
Alexandra Figueiredo – Sim, talvez explicar que ainda que este achado tenha sido em Ourém, é importante perceber que na pré-história não havia fronteiras e que as comunidades seriam mais extensas, conectando-se ambas com a paisagem, sendo que o fator principal em Alvaiázere e Ourém é esta conexão com o rio Nabão. Imaginem que sensivelmente ao mesmo tempo nós observamos a deposição de enterramentos nas antas de Rego da Murta, no Algar da Água e provavelmente no Algar da Malhada de Dentro, que estes grupos podem-se ter cruzado, formado família e estarem na origem daqueles que nos fizeram nascer.
O Alv. – Obrigada a todos pela colaboração e disponibilidade.