Em ano de celebração da democracia, eis que o nosso Parlamento, segundo órgão institucional na hierarquia do Estado e representativo de todos nós, nos vem surpreender com a interpretação do seu Presidente sobre o uso dos seus poderes e deveres e a condução dos trabalhos parlamentares.
No decurso de uma recente intervenção parlamentar, a propósito da comunicação do Governo sobre a tomada de decisão sobre o novo aeroporto, em Alcochete, e do prazo estimado de dez anos para a sua construção, o líder do CHEGA chamou à lide o caso do povo turco que, apesar de não ser tido como dos mais produtivos, tinha construído obra semelhante em metade do prazo.
Tal citação suscitou, de imediato, protestos e pedidos de esclarecimento dos deputados das bancadas da esquerda que consideraram a citação injuriosa e insultuosa para os Turcos e questionaram o Presidente da Assembleia da República (PAR) no sentido de advertir o orador para a impropriedade ofensiva da expressão usada.
Até aqui, nada de verdadeiramente anormal, pois a discordância de visões e opiniões nas bancadas da Assembleia da República (AR) é trivial e corrente e, ao fim e ao cabo, mais não traduz do que as diferentes visões e perspectivas ideológicas dos nossos representantes parlamentares, fazendo jus à máxima popular de que “a cada cabeça, sua sentença”. O problema adensa-se quando, insolitamente, o PAR, ao invés de chamar a atenção do orador no uso da palavra para a impropriedade, inadequação ou deselegância da expressão usada, se recusa a intervir por, em seu entender, o deputado orador usufruir de liberdade de expressão…!?!
É claro que o direito à liberdade de expressão foi uma das conquistas da revolução dos cravos e integra a essência das democracias, passando a fazer parte da panóplia dos direitos de cidadania de todos nós. E, por maioria de razão, dos senhores deputados que, livremente, escolhemos para nos representarem na Casa da Democracia. Porém, isso não significa que, no seu uso ou ao abrigo dela, os mesmos possam, em nosso nome e representação, dizer todos os dislates e aleivosias que, porventura, lhes venham à mente.
E ainda que gozem de expressa imunidade pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções, tal como previsto no artigo 157º da Constituição da República, as intervenções dos senhores deputados devem pautar-se de acordo com os princípios e valores democráticos, nomeadamente os do respeito pelo bom nome, reputação e imagem pessoal. Em suma, com educação e civilidade!
Até podemos admitir que, no calor da sua intervenção, o orador se deixe arrastar pelo entusiasmo e excitação do tema em debate e aluda ou profira expressões menos adequadas, injuriosas ou mesmo ofensivas dos alvos visados, mas se tal acontecer rege o número 3, do artigo 89º, do Regimento da AR, aplicável ao funcionamento da actividade parlamentar, que dispõe: “o orador é advertido pelo Presidente da Assembleia da República quando se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo, podendo retirar-lhe a palavra.”
Abstendo-se de usar e de aplicar o Regimento, quando e sempre que tal se justifique, como a nosso ver foi o caso, o PAR, ao invés de contribuir para o bom e salutar funcionamento da vida parlamentar, estará por certo a contribuir, ainda que por omissão, para a sua degradação e apoucamento.